Historiador Chris Carlsson quer mudar o mundo que conhecemos
Nowtopia: Conceito criado por Chris Carlsson
Qual foi o contexto em que a Massa
Crítica surgiu?
No início dos anos 1990, na região em que eu morava
em San Francisco, não havia muita gente andando de bicicleta. Mas havia alguns
de nós, e nos reuníamos socialmente, para beber cerveja, fumar maconha e
conversar sobre coisas como política e ciclismo. Depois de cerca de um ano, uma
ideia apareceu nesses bate-papos, de que deveríamos fazer algo novo. E essa
nova ideia foi de que deveríamos nos reunir em um determinado local e pedalar
para casa. Enchendo a rua de bicicletas, não deixaríamos lugar para os carros.
A ideia era de que nos tornaríamos o trânsito, e que o ritmo seria determinado
por nós. A primeira vez foi em setembro de 1992, quando apareceram umas 50
pessoas. Um mês depois, foram 75 pessoas, e um mês depois, cento e poucas
pessoas, e não parou de crescer, até que, um ano depois, éramos mil pessoas.
Agora, já se passaram 21 anos, e as pessoas ainda participam. Geralmente,
centenas – às vezes, milhares.
Havia um propósito além desse?
Nunca realmente teve um propósito além de identificar
outros ciclistas e nos encontrar em um lugar público. Não há uma organização –
chamamos de “coincidência organizada” –, e não há estrutura formal, é só
aparecer em uma bicicleta que você é um membro igual a todos os demais. Era
muito empolgante fazer parte disso, então as pessoas começaram a fazer o mesmo
em outros lugares. Era uma amostra de uma nova vida que poderia existir na
cidade.
O que mudou nos 21 anos de Massa
Crítica? Ela ficou mais politizada?
Teve bastante política no começo, mas muitas das
pessoas que apareciam não se importavam com isso. Nos Estados Unidos, as
pessoas acham que política é algo que acontece a cada quatro anos. Fora isso,
acham que nada é político. Eu acho que política está em tudo que fazemos,
qualquer conversação ou interação que se tenha com outro ser humano. Eu pus
esses argumentos em panfletos que entregamos às pessoas na Massa Crítica. Pela
primeira vez em anos, tivemos muitas discussões e debates sobre política,
filosofia, então uma cultura muito intensa surgiu. Acho que por isso ela teve
tanto poder para ir além de San Francisco. Na Itália, por exemplo, o evento é
muito político, assim como em outras partes do mundo. A Massa é basicamente uma
incubadora, um espaço em que as coisas começam a acontecer.
A população de Porto Alegre, em
geral, conheceu a Massa Crítica há três anos, quando um motorista atropelou
ciclistas que participavam do evento. E, de fato, há muita gente que acredita
que a Massa é composta de ciclistas que apenas querem atrapalhar a vida das
outras pessoas. O que o senhor acha disso?
A mídia distorceu completamente o que acontecia. No
passado, diziam que a Massa Crítica tratava-se, basicamente, de bloquear o
trânsito, de confrontar, um movimento raivoso, anarquista e violento. Se você
for pensar, há 20 anos tem ocorrido essa pedalada em massa em centenas de
cidades do mundo. Com a exceção de Porto Alegre, quase não houve incidentes com
violência. O primeiro pressuposto na sociedade é de que quem dirige um carro
tem o direito da rua, e que todos os demais deveriam sair do caminho, porque o
motorista do carro é o dono da rua. Isso não é verdade, mas é a presunção feita
na nossa sociedade baseada no automóvel. E a Massa Crítica é uma resposta
política a isso. Não, a rua é um espaço público, que todos podem usar. Aliás,
provavelmente não deveríamos usá-la para transporte todo o tempo.
Como dá para mudar isso?
Já está mudando. Há pessoas que estão trabalhando
muito para mudar políticas em nível municipal e que realmente têm ideias sobre
como organizar o espaço urbano. Há encontros de pessoas em espaços públicos
para debater suas vidas como cidadãos em uma democracia, em vez de serem
meramente consumidores passivos na sociedade que os circunda. É esse tipo de
mudanças lentas, passo a passo, que vai mudar o mundo. Leva um longo tempo. Mas
as pessoas são impacientes, querem que as coisas aconteçam hoje, amanhã.
O mercado abraçou a cultura da
bicicleta. É possível ver bikes em anúncios de todo tipo de produto, de roupas
a empreendimentos imobiliários. É uma oportunidade para a causa ou apenas uma
distração?
Ambos. Mas, principalmente, é devido ao
funcionamento normal da sociedade capitalista, que sempre tem sido pegar
qualquer fenômeno humano interessante e reduzi-lo a commodities, para venda,
tirando o seu significado. O fato de que a bicicleta se tornou uma tendência,
para mostrar que você é jovem, elegante e inteligente, não é surpreendente. O
mesmo ocorre na moda, na música.
Que país ou cidade é mais avançado em
políticas pró-bicicleta?
Gosto muito de Copenhague (capital da Dinamarca),
onde minha mãe nasceu. Já fui lá muitas vezes, e sempre me surpreendo
positivamente com o fato de a bicicleta ser o principal meio de transporte,
como os carros cedem lugar às bikes. Creio que uma em três viagens em
Copenhague seja feita de bike, mesmo na neve. Minha avó pedalou lá até os 90
anos. Espero fazer o mesmo.
Em Porto Alegre, os ônibus estão em
greve há mais de 10 dias. Como são basicamente o único meio de transporte
coletivo, a população está sofrendo muito. O que isso nos diz sobre
planejamento urbano?
Minha reação normal a uma greve de transporte é de
que ela seria mais eficiente se os grevistas continuassem a trabalhar, mas não
cobrassem as passagens. Assim, teriam toda a população ao lado deles, e o
serviço continuaria sendo prestado. Do ponto de vista de políticas públicas,
deveria aumentar a oferta de serviços compartilhados, fora da lógica do mercado
e do dinheiro. Isso não virá do governo, tem de vir de baixo. Sempre espero
coisas novas das pessoas comuns, não do governo.
Desde o atropelamento da Massa
Crítica, três anos atrás, e com os protestos do ano passado, fomos confrontados
por movimentos horizontais, sem líderes. Como entender e lidar com esse tipo de
movimento?
A vantagem do horizontalismo é que todos podem
participar e que você consegue criatividade máxima vindo de baixo. Nem sempre
funciona bem, às vezes pode ser terrivelmente ineficiente, não é a melhor
resposta para tudo o tempo inteiro. Mas, em geral, deveríamos ir nessa direção o
máximo que pudermos. Movimentos horizontais também oferecem muita
flexibilidade: podem mudar de forma e comportamento muito rapidamente. Os
governos geralmente não podem fazer isso, porque são sistemas hierárquicos
antiquados e obsoletos, e eles não podem encarar isso sem ser com força bruta.
Mas o horizontalismo produz também muito caos para todos, inclusive para quem
participa. Mas é um período de aprendizado, e fenômenos horizontais devem
acontecer mais e mais.
A cultura da bike originou fanzines,
oficinas comunitárias e a Massa Crítica. Esses são exemplos do que o senhor
chama de Nowtopia (a utopia do agora, em tradução livre). Qual é a ideia por
trás desse conceito?
A maior parte do trabalho que as pessoas fazem é
uma perda de tempo. Elas deveriam parar. Bancos, seguros, mercado imobiliário,
publicidade, produção de armas militares e de produtos que estragam a cada seis
meses. Mas as pessoas continuam tendo de ganhar dinheiro para pagar as contas.
Então, temos a vida dividida entre o trabalho que precisamos fazer para
sobreviver na sociedade capitalista e o trabalho que realmente queremos fazer,
o que define quem somos. Eu trabalhava em um banco quando era mais jovem.
Olhava ao meu redor e via pessoas muito semelhantes, mas que tinham ideias
diferentes sobre quem cada um era. Não éramos bancários, apenas estávamos
trabalhando em um banco por algum tempo para ganhar dinheiro. Percebemos que as
pessoas, quando não estão em seus empregos, estão trabalhando muito em outra
coisa, geralmente criativa.
Quais são outros exemplos?
Outro exemplo são as hortas urbanas. Pessoas
começaram a cultivar alimentos orgânicos perto de casa em áreas desocupadas.
Isso muda tudo: a relação delas com o ecossistema em que vivem, o entendimento
da ciência do solo, da luz do sol e da água, de uma forma que não poderiam
entender se lessem uma revista ou um livro. Outro exemplo é o mundo do
software. Muitas das coisas que mais gostamos na vida moderna dos computadores
são de graça e foram feitas por pessoas que estavam mexendo com softwares fora
da lógica de seus empregos. Basicamente, o conceito da Nowtopia é de as pessoas
tirarem seu tempo e seu conhecimento do mercado. Assim, estão construindo a
fundação para a vida pós-capitalismo, o que é uma necessidade urgente.
Todo mundo tem esse potencial? Vemos
muitas pessoas que não fazem esse tipo de atividade extra.
É uma minoria na sociedade, mas uma minoria
importante – estão em cada vez mais partes do mundo. A melhor forma para
entender é com um slogan antigo: “É a semente do novo mundo crescendo na
cápsula do velho mundo”. É uma visão utópica, que nunca aconteceu em lugar
algum. Se poderá acontecer? Acho que pode, creio que essas são ações de pessoas
indo nessa direção. Mas há forças poderosas que farão tudo para minar esses
esforços. Temos um longo caminho pela frente, precisamos do que chamo de
“paciência radical”.
O senhor diz que o conceito de classe
média é um mito. Por quê?
Estou interessado no significado mais profundo de
classe, que foi descrito por (Karl) Marx em O Capital, em que há essencialmente
duas classes: a dominante e a dominada. Por isso, a classe média é um mito. E é
um mito importante, porque faz com que as pessoas não pensem sobre o seu
trabalho. A classe média, em sua maioria, está mais interessada no que pode
comprar ou possuir. O problema real é que não temos democracia na economia. É
sobre isso que falamos em relação à classe média: é uma sociedade em que as
pessoas abdicaram da responsabilidade de participar das escolhas sociais,
políticas e democráticas sobre o que produzimos e como produzimos. Você pode se
identificar como quiser, mas o fato é que precisa se vender ao seu emprego,
mesmo se for bem pago. A maioria das pessoas de “classe média” que conheço são
apenas proletários com uma boa renda.
Milhões de brasileiros foram às ruas
para protestar contra “tudo que está aí”. O que o senhor acha que os protestos
indicam?
Fiquei muito feliz com o que aconteceu no Brasil e
na Turquia, em fenômenos muito similares. Toda a estrutura da sociedade estava
em xeque. Há uma certa transferência de energia para um movimento de oposição
social que explode de repente em diferentes lugares de forma que nunca vimos
antes. E é apenas o começo. As pessoas aprenderam muito naqueles dias na rua,
sobre como se organizar, que tipos de problemas aparecem e como enfrentá-los.
Não resolveram todos os problemas e não terminaram a revolução, ela ainda está
dormente. Mas isso mostra que ela pode acordar em um período curto de tempo. Eu
realmente acho que isso está relacionado com a Nowtopia e ao entendimento de
que a vida pode ser muito boa – não apenas para os ricos, mas para todos.
O senhor não acha que, sem a busca
pelo dinheiro, não haveria avanços tecnológicos? Ou isso não importa?
Temos mais tecnologia do que precisamos. E muitas
vezes trata-se de usar menos tecnologia, e não mais. Precisamos melhorar nosso
trabalho em reciclar o que já produzimos, e não criar esses lixões por todos os
lados. E haveria avanços tecnológicos em um mundo sem dinheiro, claro. Porque
ainda haveria paixão pela ciência, pela inovação. É um prazer pessoal,
competitivo, de tentar criar algo novo, legal, que facilitaria a vida. Também
há o reconhecimento social que vem disso.
O senhor é autônomo há muitas décadas
e participa de vários projetos comunitários. De onde vem a sua renda? Como o
senhor disse, ainda precisamos pagar as contas...
É verdade. Eu ganho um pouco de dinheiro de várias
fontes. Uma pequena parte da minha renda vem de trabalhos com design e layout
de livros. Ganho um pouco de dinheiro no meu projeto histórico, Shaping San
Francisco. Ganho também para dar aulas – estou lecionando em uma universidade
local, San Francisco Art Institute. Também ganho um pouco de dinheiro (bem
pouco) escrevendo artigos. Entre todas essas coisas, ganho apenas o suficiente
para sobreviver.
Quando o senhor resolveu viver assim?
Nunca vivi de outra forma. Tive empregos em bancos
e outros trabalhos temporários nos anos 1980. Depois disso, nunca mais tive um
emprego, sempre tive meus pequenos negócios. Mas muitos dos meus trabalhos fiz
de graça. Sempre ganhei apenas o suficiente. Minha meta sempre foi ter um custo
de vida muito baixo. Consigo isso com um aluguel barato e por não ter um carro.
Carros consomem grandes quantias de dinheiro.
Que conselhos o senhor dá a quem quer
se libertar da vida que vive?
É fácil. Não acontecerá tudo ao mesmo
tempo, mas você deve dar passos na direção certa. Faça o que você ama, mas não
por dinheiro. Tente minimizar o tempo que você gasta fazendo dinheiro e
maximize o tanto da sua vida que é de graça. Você estará fazendo coisas com as
quais realmente se importa. Saiba que a verdadeira riqueza não é dinheiro, são
relacionamentos. São pessoas que estão na sua vida e cuidam de você, e das
quais você toma conta. Porque o dinheiro some em minutos. Se você começar a
mudar a sua maneira de compreender a riqueza e a vida, descobrirá que é mais
rico do que pensava, e que poderá ter muito mais se perseguir essa lógica.
Fonte:
http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/geral/noticia/2014/02/historiador-chris-carlsson-quer-mudar-o-mundo-que-conhecemos-4413852.html
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